Por Marco Pontes (*)
O Brasil tem dado sucessivos maus exemplos quando se trata de honrar contratos. A judicialização dos contratos traz um cenário de muita instabilidade. Quando isso acontece, a sociedade perde. Espera-se que o contrato, uma vez celebrado, seja cumprido. Se não for assim não teremos a almejada segurança jurídica, econômica e social, tão importante para a sociedade avançar.
Pretendo com o presente artigo: a) trazer um pouco de luz ao debate que está tomando contornos preocupantes para alguns milhares de consumidores que confiaram no sistema e estão sendo surpreendidos no momento derradeiro, isto é, a Entidade cumprir com a sua parte no contrato; b) demonstrar que a quebra do princípio de solvência atuarial, alegada por algumas Entidades para aplicação da onerosidade excessiva, não encontra respaldo e, finalmente, c) que a lide em questão não deveria estar sendo discutida sob a ótica atuarial, mas sim sob a ótica do direito do consumidor.
O rompimento de forma unilateral de um contrato de previdência privada é uma violação clara ao princípio de boa-fé entre as partes, especialmente, após decorridas décadas do contrato ter sido celebrado, como é o caso dos consumidores (pessoas físicas e jurídicas), que, no início da década de 1990, adquiriram os planos de aposentadoria na modalidade Fundo Garantidor de Benefícios (FGB).
O contexto dos planos de aposentadoria na modalidade FGB
Na década de 1980, o mercado de previdência complementar estava a pleno vapor. A maioria das empresas estatais e de economia mista, preocupadas com o futuro de seus empregados, instituíram programas de aposentadoria em Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC), ou fundos de pensão próprios, com a finalidade de complementar a renda de aposentadoria oficial para seus empregados não sofrerem perdas tão elevadas do poder de compra após se aposentarem. Não demorou muito para as grandes instituições privadas do país seguirem o mesmo caminho das empresas estatais. Assim, os fundos de pensão se expandiram de forma acelerada, seguindo o modelo fechado de previdência complementar.
O modelo aberto de previdência complementar, representado pelas Entidades Abertas de Previdência Privada (EAPP), estava estagnado. A estagnação devia-se à péssima imagem deixada pelos montepios, que, no passado, haviam prometido aos consumidores uma renda de valor elevado, capaz de propiciar a esperada tranquilidade no momento da aposentadoria. Na década de 1980, quando os consumidores dos planos comercializados pelos montepios foram requerer os benefícios prometidos, se depararam com a dura realidade: eles evaporaram; restava receber alguns centavos que não pagavam sequer a passagem de ônibus para dar entrada na papelada no Montepio.
E por que isso aconteceu? Foram inúmeras as razões que levaram a tal situação. Uma delas foi o fato de os montepios utilizarem de forma indiscriminada projeções de inflação elevada nos valores das rendas prometidas no futuro, sem a contrapartida da correção monetária nos valores de contribuição.
Quando a malícia e o oportunismo de alguns empresários se deparam com a ingenuidade do consumidor e o Estado se isenta de seu dever, invariavelmente o consumidor paga a conta. Uma grande legião de brasileiros foi lesada. Esse fato criou uma enorme barreira psicológica para o desenvolvimento do setor de previdência complementar, segundo o modelo aberto no país. O desafio estava lançado.
As seguradoras que tinham autorização da Superintendência de Seguros Privados (Susep) para explorar esse mercado, juntamente com as EAPP, dispunham de uma grande oportunidade e do legítimo direito de participar do crescimento da previdência complementar no país. Embora não fossem responsáveis pelo que aconteceu, sofriam com os efeitos negativos que marcaram o segmento.
Por meio das lideranças dos principais players do setor de seguros, foi possível mobilizar uma frente ampla de profissionais: atuários, advogados, especialistas em marketing, entre outros que trabalharam, incessantemente, no âmbito das comissões técnicas na extinta Federação Nacional de Seguros (Fenaseg), hoje CNseg, e da Associação Nacional Aberta de Previdência Privada (Anapp), para desenhar um produto capaz de atrair a população.
Assim nasceu o FGB. Um dos principais atributos do produto foi a flexibilidade. O consumidor poderia aumentar ou reduzir as contribuições, suspender temporariamente ou fazer resgates parciais do fundo, entre outras vantagens. A estratégia de venda do produto foi apoiada por um marketing eficiente, que destacou a regulamentação do setor de previdência complementar, o apelo do incentivo fiscal de ter as parcelas de contribuição ao plano, até um determinado limite, abatidas para fins de cálculo do imposto de renda; e a promulgação da Lei de Defesa do Consumidor de 1990 foi uma ferramenta vital nas campanhas de venda dessas Entidades.
A principal mensagem a ser transmitida para o consumidor aderir ao produto foi a de que o Estado não faltaria ao dever de protegê-lo. Os instrumentos disponíveis no início da década de 1990 certamente não permitiriam que o nefasto momento vivido por aquela legião de idosos se repetisse.
Principais características do FGB
Da contribuição paga ao FGB para cobrir a cobertura de sobrevivência, a Entidade poderia reter até o limite de 10% (máximo permitido em lei) do valor pago pelo consumidor, a título de carregamento para cobrir despesas com comercialização. Além do carregamento, a Susep permitiu a cobrança de taxa de administração sobre o fundo, que variava de 0,25% a 3% a.a. na fase de capitalização. Em alguns casos, também se previa uma taxa de administração sobre o valor do passivo por ocasião da conversão do fundo acumulado em uma modalidade de renda prevista no regulamento do plano. Nos casos em que a cobertura de risco por morte e invalidez tivesse sido contratada, o percentual máximo de carregamento permitido pela legislação foi 30%.
Vale lembrar que, quando as coberturas de risco não são estruturadas no regime de capitalização, como na cobertura de sobrevivência, os recursos não retornam para o consumidor, pois a Entidade os utilizará para cobrir o capital ou a renda no caso de morte do consumidor para o seu dependente ou da invalidez do próprio consumidor ao longo do prazo de diferimento (tempo decorrido entre a idade contratada e a idade de aposentadoria).
Uma nuance importante de destacar: quando o consumidor atinge a idade de aposentadoria e opta por uma renda vitalícia simples, no caso de seu falecimento, independentemente de ter decorrido um mês, após dar início ao pagamento da renda, a reserva matemática (fundo acumulado para pagar a sua renda) fica para a Entidade, pois o fator solidariedade está presente. Assim, o ganho atuarial (relativo aos valores de que a Entidade se apropria), advindo da morte precoce de um consumidor, servirá para financiar as eventuais perdas atuariais (valores relativos ao pagamento de renda que excede a sobrevida do consumidor, além da expectativa de vida estimada pela Entidade). Em tese, os ganhos e as perdas atuariais tenderão a ser equivalentes.
Da parte do fundo que é capitalizada, incide um indexador monetário, acrescido de 6% a.a. e um percentual do excedente financeiro (parte da rentabilidade real, menos a rentabilidade garantida, que, como destacamos, é correção monetária mais 6% a.a.). A opção de 6% não era obrigatória, e muitas Entidades optaram por uma taxa menor.
A grande maioria das Entidades optaram por escolher o Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Não por acaso. Pairava uma suspeita da população de que os índices publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) manipulavam a inflação real por questão política. A escolha do percentual de 6% a.a. levou em conta o fato de que os juros do produto mais popular do país, a caderneta de poupança, remuneravam com 6% a.a. Não faria sentido oferecer um produto com juros menores do que a caderneta de poupança, caso contrário o apelo de venda ficaria enfraquecido.
Faz-se necessário destacar que as Entidades que administraram as carteiras de FGB ao longo dos períodos benfazejos da economia – que duraram décadas – foram capazes de obter lucros sucessivos. Ao final do período contratado, o consumidor poderia usufruir o fundo acumulado pelo FGB, optando por uma das seguintes opções: a) realizar o saque parcial ou integral do fundo; ou b) converter o fundo em uma renda entre as várias que compunham a gama de opções da Entidade.
As tábuas mais frequentes utilizadas pelas Entidades na ocasião foram a AT-49 (Basic M/F) e a AT-83 (Basic M/F). Para o leigo que nos lê, a tábua é uma variável importante que o atuário usa para medir a probabilidade de morte ou sobrevivência da pessoa. Naturalmente, a segunda experiência oferece uma sobrevida maior do que a primeira, pois se refere a uma época mais recente. Assim, um valor de capital X dá origem a rendas diferentes. Por exemplo, caso a Entidade tivesse optado por usar a AT-83, ao converter o capital X acumulado pelo consumidor ao fim do período de diferimento (tempo decorrido entre a contratação do plano até a idade de aposentadoria do consumidor) em uma renda mensal vitalícia postecipada ou antecipada, o capital X teria uma renda menor do que a opção de uma renda baseada na AT-49, porque a expectativa de vida da AT-83 é maior que a AT-49. Raciocínio análogo aplica-se à taxa de juros. Se a Entidade garante uma taxa de 6% a.a., o valor do fundo necessário para pagar uma renda no futuro é menor do que se a Entidade optasse por uma taxa de 4% a.a. Quanto maior a taxa, maior será o desconto no fluxo de caixa.
Para comercializar o produto no mercado, era preciso que a Entidade obtivesse a aprovação do órgão supervisor, isto é, a Susep. Somente após a aprovação da Susep, que envolvia a instância técnica e jurídica, o produto poderia ser comercializado. A responsabilidade pela definição das hipóteses demográficas, econômicas e financeiras sempre foi exclusivamente da Entidade. Portanto, a escolha da tábua e da taxa de juros foi uma decisão estratégica que dizia respeito à política de preços e de negócios praticada pela Entidade. A discussão da taxa de juros não é nova, como algumas Entidades defendem. Esse ponto precisa ser reforçado, para que fique claro que o consumidor não tinha a opção de discordar ou intervir, apenas aceitar ou não contratar o produto, pois trata-se de um contrato de adesão.
A venda dos produtos de FGB na modalidade empresarial teve início a partir da Resolução CNSP n. 33/89, com grande sucesso. Já a comercialização dos planos FGB na versão individual alcançou sucesso similar, tendo um crescimento acentuado a partir de 1992. As EAPP e as Seguradoras, associadas às Instituições Financeiras e autorizadas a operar com o produto FGB, foram as principais responsáveis pelos lucros dessas Instituições por sucessivos anos.
Vale registrar que, desde a adoção do Plano Real em 1994, não seria possível o país manter taxas de juros tão elevadas ad aeternum e que as taxas deveriam convergir para aquelas praticadas nas economias mais estáveis, como na Europa e nos Estados Unidos. É preciso salientar, também, que variações de taxas de juros no mercado são cíclicas – elas oscilam no tempo (consulte-se o link do Banco Central que aponta a evolução da taxa Selic de 1996 até a presente data – https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/historicotaxasjuros). Por diversos anos a taxa foi superior a dois dígitos. Em 1999 chegamos a uma taxa de 45% a.a., por exemplo. Portanto, não são razoáveis ou aceitáveis, à luz do bom senso, as alegações de que o mercado foi pego de surpresa com a redução no cenário da taxa de juros na década de 2020, especialmente por aquelas Entidades que têm como principais acionistas grupos financeiros.
A década de 2000 e 2010 – início e derrocada dos planos FGB
Os financistas no Brasil sempre tiveram grandes dificuldades em lidar com a matéria-prima do seguro, isto é, o risco, e partiram para a simplificação. Em 1997 apostaram todas as suas fichas nos planos PGBL e VGBL e iniciaram sucessivas campanhas para que os consumidores (pessoas físicas e jurídicas) que tinham o FGB migrassem para as carteiras de PGBL/VGBL. A maioria das Entidades conseguiu sucesso no movimento de migração. Isso ocorreu em razão do pouco conhecimento dos consumidores em relação aos produtos de previdência.
Não podemos esquecer que os mercados se desenvolvem segundo dois caminhos: por meio de iniciativa própria das organizações, que direcionam seus investimentos em capital humano e tecnologia para obter vantagens competitivas em relação aos seus concorrentes; ou por imposição dos reguladores.
Nesse sentido, é crucial destacar o trabalho que a Susep tem feito ao longo de décadas para proteger os consumidores e o sistema. Em 2004, decorridos 10 (dez) anos de Plano Real, e com o cenário de redução de taxas de juros iminente para o futuro, a Susep publicou a Circular Susep 272, que dispõe sobre parâmetros mínimos necessários à elaboração da avaliação atuarial, a ser apresentada pelas sociedades seguradoras, EAPP e sociedades de capitalização.
A referida Circular estabeleceu a necessidade de as supervisionadas instituírem a Provisão de Insuficiência de Contribuição (PIC). A provisão tinha a finalidade de proteger a carteira dos produtos de previdência privada que poderiam gerar prejuízos no futuro. Por sua vez, ficava a critério da Entidade definir a metodologia para definir como a PIC deveria ser calculada. A Entidade tinha total liberdade para definir a metodologia: poderia ser conservadora ou não. Vale lembrar que, sendo conservadora, ela garantia um colchão de proteção maior para a carteira. Esse evento afeta a sua performance e, consequentemente, o valor dos dividendos a ser distribuído aos acionistas. A Circular 272 propiciou um movimento importante para as Entidades reverem as políticas de comercialização de produtos de previdência privada.
Dois anos após a publicação da Circular 272, em 2006, entraram em vigor as Resoluções CNSP n. 155/2006 (posteriormente substituída pela Resolução CNSP n. 178/2007) e n. 158/2006, que instituíram os requerimentos de capital baseados em risco. O Capital Base veio estabelecer um valor mínimo de capital em função das regiões em que a Entidade (ente supervisionado) resolvesse atuar. Já o Capital de Risco era o que efetivamente instituía, nos mercados supervisionados pela Susep, o requerimento de capital, tomando-se como base o perfil de risco suportado pelas operações da Entidade.
Cabe aqui uma explicação adicional para um melhor entendimento do movimento realizado pela Susep. As provisões técnicas de uma Entidade que administra riscos, como é o caso das Entidades supervisionadas pela Susep, têm a finalidade de cobrir as perdas esperadas. A finalidade de introduzir os capitais adicionais por tipo de risco no mercado brasileiro foi o de proteger as Entidades quanto aos eventos relacionados às perdas inesperadas, isto é, eventos raros, mas quando presentes podem levar uma Entidade à insolvência. Um exemplo de necessidade de injetar capital na operação é quando sua exposição ao risco se torna excessiva, conforme veremos mais adiante, que é o que parece estar atrás do movimento de algumas Entidades que estão optando por romper unilateralmente o contrato em vez de injetar capital na operação.
Seis anos mais tarde, a Susep publicou a Circular Susep 410, de 22 de dezembro de 2010. Por meio dessa Circular foi introduzido no mercado brasileiro o Teste de Adequação de Passivos (TAP), para fins de elaboração das demonstrações financeiras, que definiu regras e procedimentos para sua realização, a serem observados pelas sociedades seguradoras, Entidades Abertas de Previdência Complementar (EAPC) e resseguradores locais.
Essa obrigatoriedade decorreu da adoção das normas internacionais de contabilidade pelo Brasil e, consequentemente, da aprovação do Pronunciamento Contábil CPC 11 – Contratos de Seguros, que tem correlação com a Norma Internacional de Contabilidade – IFRS 4, primeira onda do IFRS no Brasil. Assim, a partir da aprovação do CPC 11, as entidades brasileiras tiveram que se adequar aos padrões estabelecidos internacionalmente quanto às operações de seguros e previdência.
A Circular Susep 410/2010 buscou implementar, de modo mais objetivo, o que o CPC 11 fixava. Segundo a Circular Susep 410/2010, o TAP devia ser aplicado para avaliar as obrigações decorrentes de contratos e certificados dos planos de seguro, de previdência complementar e de resseguro contratados até a data-base do teste.
Com a adoção do TAP, deixou de ser necessária a constituição da PIC e passou a ser exigida a da Provisão Complementar de Cobertura (PCC), quando fosse constatada insuficiência nas provisões técnicas, conforme valor apurado no TAP.
Importante destacar o fato de que o TAP veio aprimorar as deficiências identificadas na elaboração da PIC para melhor proteger as Entidades supervisionadas para cobertura das perdas esperadas, enquanto a adoção do capital de risco de subscrição para o mercado aumentou o nível de segurança para cobrir as perdas inesperadas.
Com essas iniciativas, a Susep reforçou a mensagem que já havia transmitido em 2004, 2006 e 2007. Na prática, a PCC deveria ser constituída para a cobertura de insuficiências relacionadas à Provisão de Prêmios Não Ganhos (PPNG), Provisão Matemática de Benefícios a Conceder (PMBAC) e Provisão Matemática de Benefícios Concedidos (PMBC), as quais têm regras de cálculos rígidas, que não podem ser alteradas em decorrência de insuficiências. A PCC não é cumulativa, o saldo da provisão deve corresponder ao valor apurado no TAP realizado na data-base mais recente. Ressalte-se que, após a publicação da Resolução CNSP n. 281/2013 e da Circular Susep 462/2013 (sucedidas, respectivamente, pela Resolução CNSP n. 321/15 e pela Circular Susep 517/15), assim como a Provisão de Insuficiência de Contribuições (PIP), constante na Resolução CNSP n. 162/06 (revogada), foram extintas e substituídas pela PCC.
Aqui é preciso abrir um parêntese para falar sobre o princípio de solvência atuarial, que tem sido apregoado por algumas Entidades, para alegar a rescisão unilateral dos contratos de previdência dos planos FGB às vésperas de o consumidor entrar em gozo de aposentadoria. Tecnicamente, o princípio de solvência atuarial exige que o valor presente dos passivos (relativo ao pagamento de benefícios) da Entidade seja igual ou menor ao valor presente de seus ativos (fundos que possui), tendo em conta uma série de parâmetros (premissas biométricas, populacionais e econômicas) e outros fatores que influenciam a evolução dos passivos e dos ativos.
Em outras palavras, para que o leigo possa compreender o princípio de solvência atuarial em uma EAPC, destaca-se: ele se refere à capacidade de a EAPC honrar suas obrigações futuras com os recursos que tem. No caso em questão, de ter ativos suficientes (fundos) para cobrir os compromissos futuros (pagamento de benefícios), levando em consideração a incerteza das obrigações futuras.
Portanto, a alegação da tábua de mortalidade e da taxa de juros parece não ser de fato o fator preponderante para alegação da tese de que o princípio de solvência atuarial ficou comprometido, mas sim o limite de aceitação de riscos dessas Entidades que ficou comprometido, pois qualquer produto de longo prazo, como são os casos dos planos de previdência, lidam com as incertezas de longo prazo relacionadas às premissas que são fixadas no contrato e outras associadas à carteira do produto, tais como: resgates, novos contratos, volume de recursos (contribuições ordinárias e extraordinárias), cancelamentos etc.
Além das incertezas de longo prazo, as garantias financeiras estão sujeitas a riscos não diversificáveis, como o risco da taxa de juros de mercado, risco de garantia da rentabilidade mínima e de estratégia de investimentos, entre outros.
Como podemos depreender, o limite de aceitação de riscos de uma Entidade de Previdência não se restringe apenas às características do risco que assume, mas também da contrapartida de necessidade de capital para assumir os riscos que traz à Entidade, de modo que o risco de insolvência fique minimizado, única forma de a Entidade se manter em situação de solvência.
Por outro lado, por princípio de solvência atuarial podemos entender um conjunto de medidas a serem empreendidas. Ora, todos os movimentos realizados pela Susep ao longo do tempo, conforme descrevi acima, se constituíram, na prática, em medidas de prevenção para atender ao princípio de solvência atuarial. Em essência, visaram proteger as Entidades e os consumidores. Se uma Entidade comprometeu o seu limite técnico, isto é, sua capacidade de aceitação de risco porque incentivou o consumidor por meio de campanhas publicitárias, como é de conhecimento público, a aportar mais contribuições para o seu FGB de modo que ele fosse beneficiado para fins de imposto de renda, ela foi beneficiada para administrar mais recursos. Ele, o consumidor, não pode ser penalizado.
A Susep, ao exigir a injeção de capital adicional para a Entidade, faz isso para manter a solvência da Entidade. É preciso destacar novamente que a Susep fez a sua parte ao alertar o mercado de forma sistemática por meio da emissão de farta legislação ao longo dos anos. Por outro lado, já era de conhecimento prévio da Entidade, desde a aprovação do produto, que a aceitação de riscos deve estar condicionada ao Limite Técnico da Entidade.
Portanto, é questionável à luz dos fatos aqui apresentados a alegação de que os planos na modalidade FGB geram onerosidade excessiva para algumas Entidades requererem a repactuação de forma unilateral dos contratos às vésperas de o consumidor optar por sua aposentadoria. Se o princípio de solvência atuarial não é aplicável, prevalece a necessidade de que o tema seja tratado sob a ótica do direito do consumidor, e não sob a perspectiva atuarial.
Até porque o movimento de rompimento de contrato não é generalizado. As Entidades que observaram os alertas emitidos pela Susep, e tomaram as medidas necessárias para se proteger, não romperam os seus contratos, optaram por honrá-los, como deve ser feito, afinal, o primeiro atributo que uma Entidade que administra recursos de previdência deve oferecer ao consumidor é a confiança.
É importante acentuar também que nenhuma norma do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) ou da Susep que mencionei neste artigo impediu ou proibiu a comercialização dos planos na modalidade FGB. Foram as Entidades que, por iniciativa própria, optaram por cancelar a comercialização do produto de suas prateleiras. Enfatiza-se que nenhuma norma do CNSP ou da Susep aqui relatada suprimiu os direitos do consumidor.
Decisões geram consequências boas ou ruins. Não se pode ganhar sempre, faz parte do jogo perder. Nunca é tarde para lembrar que essa desastrosa iniciativa traz uma série de implicações negativas para todas as Entidades que operam no mercado por se tratar de algo que afeta um segmento que precisa oferecer credibilidade à sociedade. Não é razoável que mudanças sejam feitas ao bel-prazer de uma das partes, não à toa o título do presente artigo.
Definitivamente, a judicialização promovida pelas Entidades que buscam a rescisão contratual unilateral, seja por meios judiciais, seja por medidas operacionais que restringem os direitos dos consumidores, atenta contra todo o sistema de previdência complementar aberto e cria um precedente perigoso que deve ser evitado a todo custo pela Susep e pelo Judiciário. Convenhamos, a sociedade brasileira não merece passar a cada 30 anos por um novo escândalo envolvendo o mercado de previdência privada.
(*) Marco Antônio Teixeira de Pontes é atuário com formação em Estatística e APG em Administração e Liderança. É diretor técnico do Instituto Brasileiro de Atuária (IBA), eleito em 2022 e reeleito em 2024 com mandato até 2026, membro pleno do Actuarial Standard Committee da International Actuarial Association (IAA) e membro associado do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/marco-pontes-1b338011/
(25.11.2024)